As ditaduras militares vivenciadas na América Latina
foram expressões do poder estatal, e não ‘acidentes’ de percurso ou desvio de
rotas. Essa é a defesa feita pela pesquisadora Pilar Calveiro, autora de “Poder
e desaparecimento”, recém lançado no Brasil pela editora Boitempo.
Por Paulo Pastor Monteiro*, na Opera Mundi
Pátio interior de centro de torturas em Buenos Aires/ Wikicommons
Em entrevista a Opera Mundi, Pilar, que foi sequestrada e ficou presa durante um ano e meio pela ditadura argentina, ressalta que é ‘perigoso’ tratar o regime ditatorial como “assunto do passado”, pois se “esses fatos continuam impunes, é uma permissão para que eles continuem acontecendo”.
A sua análise sociológica das ditaduras avançam ao ponto de, por exemplo, traçar um paralelo direto entre as motivações políticas que levaram à prática dos campos de concentração na Argentina e o presídio de Guantânamo, criado pelos Estados Unidos. “As grandes redes de poder, públicas ou privadas, recorrem à desaparição forçada. Essa prática, de ‘prisões de exceção’, presente em diversos lugares, é administrada e praticada pela CIA e por outras grandes corporações”.
A autora também comenta o papel da Comissão Nacional da Verdade, e não vê a lei da anistia como impeditivo para julgamentos de repressores no Brasil. Ela lembra que, na Argentina, primeiro foi feita uma comissão, que interpretou e documentou os fatos, que depois foram levados à Justiça. Pilar reconhece e identifica, nas mais cruéis práticas da ditadura, a expressão de um projeto político e de poder, e não apenas resultado de um desvio de conduta de um grupo que chegou ao poder. Leia a entrevista abaixo:
Opera Mundi: Em “Poder e desaparecimento”, é construída a ideia de que as ditaduras militares e as suas práticas não são “fatos isolados” ou “acidentes da história”. No caso da Argentina, cita que o sequestro de militantes já ocorria antes da ditadura (1976-1983). Como foi o processo que levou a formação dos campos de concentração e o sequestro de pessoas?
Pilar Calveiro: Acredito que o elemento comum entre
o Brasil e a Argentina, e com a maior parte dos países da América Latina, foi o
uso da prática da desaparição forçada para reprimir a dissidência, isto
aconteceu em praticamente todos os países da nossa região, ou pelo menos na
maior parte deles. Se há antecedentes na sociedade argentina, eles se deram em
uma lógica diferente da realizada pela ditadura. Há casos de desaparecimentos
forçados antes de 1966.
Existe, por um
lado, a existência de grupos paramilitares, como é o casoprincipalmente da
“tríple A” (Aliança Argentina Antincomunista), um organismo privado, com a
proteção de parte do estado, o ministério do Bem Estar Social, que sequestrava
e assassinava pessoas, mas, na maioria dos casos, os cadáveres apareciam.
Também ocorreram casos de desaparição forçada, com intervenção militar na
província de Tuculmán, em 1975. Há estes antecedentes, mas o que não há é este
enorme aparato de desaparecimento que tem cobertura nacional, feito dentro do
próprio aparato do Estado e seguindo a estrutura das instituições militares.
Você acredita que é importante que a sociedade discuta esse período? Alguns argumentam que as ditaduras são fatos do passado, que não deveriam ser revirados. Como você vê essa discussão?
Isso não é um assunto do passado, ou seja, apesar dessas
coisas terem ocorrido no passado, se esses acontecimentos permanecem impunes,
significa uma permissão para que continuem ocorrendo. O julgamento dos crimes
contra a humanidade não é uma questão do passado, tem relação com o estado
atual da nossa democracia, necessita ser visto como uma questão do presente, do
que estamos dispostos a aceitar ou não.
Na Argentina, houve o julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura. No Brasil, está em curso à Comissão da Verdade, que estuda este período, mas não vai realizar nenhum julgamento. Qual a diferença na forma como os dois países tratam o seu passado? Quais são os efeitos sobre a organização política dessas sociedades?
Na Argentina, assim como no Brasil, as comissões tiveram
um papel semelhante: estabelecer qual é a verdade, investigar e identificar os
fatos ocorridos. Posteriormente, pode haver, a partir disso, algum processo
que, mesmo não fazendo parte da comissão da verdade, tome conta de discutir a
pertinência dos juízos. No Brasil, aconteceu um processo de anistia, mas também
há muitos grupos que consideram que esse processo não foi legal e deveria ser
questionado. Então, o que aconteceu na Argentina, foi que posteriori as
investigações, se deu a decisão política de submeter a juízo aquelas pessoas
que estavam envolvidas em delitos contra a humanidade. Houve uma reorganização
da sociedade civil, e não somente organizações de familiares, dos
sobreviventes, mas também de outros tipos de grupos ligados a memórias. Tudo
isso fez com fosse mantida a discussão e a demanda por justiça, a qual se
incorpora ao sistema político e logo se chega aos julgamentos que estão
atualmente abertos.
Em seu livro, é muito forte a ideia da “retirada da subjetividade” e da “quebra psicológica” dos presos. Por que isso acontecia e qual o peso disso?
Tem um enorme peso porque todo o “sistema
concentracionário’’, como aconteceu na Argentina, tem a ver com esse
desconstrução da pessoa e da sua condição de sujeito. A primeira coisa é
retirar a sua condição mínima de sujeito de direito, logo depois, em lugar de
um nome, que é um elemento básico da identidade, ele será chamado por um
número, após isso, com um capuz cobrindo o rosto, o sequestrado passa a ser uma
pessoa sem nome e nem rosto. Se proíbe também o contato entre prisioneiros e o
direito de se comunicarem uns com os outros, por meio disso é retirado o
direito a palavra, que é um dos signos mais claros da humanidade. Dessa maneira
se retira a dignidade, pois com essa pessoa se pode fazer qualquer coisa, até
que finalmente lhes tiram a vida. É um ambiente no qual se vai o expropriando
os rastros de humanidade da pessoa, isso é parte do objetivo do campo de
concentração que é a destruição do sujeito, antes da sua destruição física e o
desaparecimento dos seus corpos.
Você faz algumas comparações entre os campos da Argentina e da Alemanha, o controle sobre a vida, a remoção da subjetividade. No que eles eram semelhantes e no que eram diferentes?
Eu tomo as semelhanças do caso argentino com o dos
alemães - de onde retiro o conceito de campo de concentração - porque são um
conjunto: uma constelação de espaços, em diferentes partes do território,
administrados pelo Estado, que funcionam como lugares de concentração e
extermínio de prisioneiros. Neles se pode realizar qualquer coisa, ou seja, se
utiliza práticas ilegais e funcionam como lugares de exceção, em que não há
direitos, pois as pessoas perdem sua condição de sujeito. Essas são algumas
características principais que conectam essas instituições tanto na Argentina
como na Alemanha.
Há também as diferenças importantes com o modelo do nazismo, com o sistema de alojamento e a prática de trabalho forçado, que extenuava e muitas vezes levava o prisioneiro à morte. No caso argentino isso não ocorreu, o que existiu foi a separação física, ao vendar os olhos, o rosto e impedir a comunicação verbal e, em lugar de trabalho, a imobilidade mais absoluta. São formas diferentes, mas, ainda sim, meios de anular o sujeito, a sua dignidade, sua individualidade e sua força física. O isolamento, a imobilidade e a obstrução da comunicação são pontos que o modelo argentino mantêm em comum com sistemas de prisão contemporâneos como o caso Guantânamo.
Ao citar essas semelhanças, entre Guantânamo e as práticas da ditadura argentina, você acredita que os princípios por trás do poder de desaparecer com pessoas ainda estão vigentes?
Os Estados Unidos e as grandes redes de poder global
públicas e privadas, o que significa falar do uso de aparatos estatais e de
grandes corporações, recorrem a desaparição forçada, portanto, esse é um
princípio que tem se mantido. Também está vigente algo que podemos denominar
como “modelo concentracional”, que relação não só com Guantânamo, mas com todos
esses grandes lugares de prisões clandestinas, operados principalmente pela
CIA, mas também por aparatos de inteligência de estados europeus. Eles
funcionam em diferentes lugares do mundo e são espaços de sequestro, com a
retenção clandestina de pessoas, pois estão fora de toda proteção dos direitos
humanos, muitas vezes nem se pode saber seus nomes e acesso à advogados, Em
Guantânamo, faz pouco tempo se começou a pensar no acesso a advogados, mas, por
muito tempo, nem sequer se soube quem estava lá. Estas instituições têm
vinculação com o desaparecimento forçado e também com uma atualização do poder
concentracionário, que continua sendo um problema importante na sociedade
atual.
Alguns militares usavam como justificativa a máxima de que apenas “cumpriam ordens”. Você pode explicar o pensamento por trás dessa ideia e também porque a fragmentação das funções dentro do campo de concentração eram consideradas tão importantes? As pessoas envolvidas no processo, na verdade, não deveriam ser consideradas "responsáveis" ou "culpados"?
Eu acredito que esse processo de fragmentação das
responsabilidades, que aconteceram no sistema repressivo argentino, é algo que
é característico de todos os modelos burocráticos onde há uma forte divisão das
funções dentro dos aparatos do Estado, cada parte cumpre uma função. Assim
ninguém se sente responsável pela totalidade dos acontecimentos, a não ser as
“cabeças”, que são aqueles que dão as ordens. Creio que isso ajuda a diluir a
responsabilidade, apesar dela nunca desaparecer ao todo. Ajuda com que cada uma
das pessoas que compuseram esse aparato, se sinta parcialmente responsável, mas
ninguém se sinta totalmente responsável. Outro dispositivo utilizado era fazer
com que todos os membros da força de segurança participasse de alguma maneira,
isso também foi uma forma de fazer com que todos fossem parte e nesse sentido é
quase o mesmo que ninguém fizesse parte, ou seja, distribuindo-a, pretende-se
diluí-la, mas a responsabilidade permanece.
* é jornalista
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