segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A democracia e a hipocrisia neoliberal


O sistema neoliberal dominante nos traslada habitualmente a imagem e a ideia de que seu âmbito de atuação é o campo econômico, caracterizado pelo domínio absoluto dos interesses dos mercados, sua hipotética autorregulação para um ótimo e equilibrado desenvolvimento e sua real busca obsessiva do máximo de benefícios. No entanto, e mesmo sendo certo que o âmbito econômico pode ser um espaço de ação prioritário, não é o único.


Por Jesús González Pazos*

Ao contrario, e para fortalecê-lo, convertendo-o em quase absoluto, requer o domínio igualmente do poder político. Nesses parâmetros, poderíamos sustentar, então, que, apesar de seu discurso, o sistema neoliberal não precisa da democracia para poder exercer essa intervenção no político e no social. Qualquer outro sistema de corte não democrático lhes seria mais útil. No entanto, a democracia será utilizada e apresentada como o sistema mais idôneo, apesar de que sempre e somente à medida em que repercuta para melhorar as condições de seu poder. Em suma, a defenderá caso lhe serve para reforçar o controle político e social; abjurará dela caso esta possa converter-se em um modelo de controle e freio de seu poder e de seu mundo econômico.

Muitos autores já ressaltaram que o neoliberalismo econômico não combina bem com que poderia ser seu homólogo, o liberalismo político. E isso é demonstrado em vários momentos nas últimas décadas e na medida em que esse neoliberalismo foi-se impondo através de diferentes métodos.


De um lado, em termos conceituais, limitam a democracia como sistema de organização política e social até levá-la à sua mínima expressão, como é a denominada e dominante democracia representativa. Porém, alguém pode sustentar que o mero arremedo de eleição a cada quatro anos justifica ou demonstra plenamente o fato democrático?


Isso funciona até a hora em que as mentiras ocultas são descobertas, as promessas sejam esquecidas, a corrupção se estenda entre a classe política ou sejam tomadas medidas e decisões que eliminam todo tipo de direitos da população, sem nenhuma capacidade crítica e controle. Sem contar que o protesto da sociedade ante essas situações será ignorado sistematicamente ou desqualificado desde a prepotência política. Não temos que ir muito longe para encontrar exemplos dessa falta de controle social sobre as decisões da "casta política”, apesar da evidente corrupção, não cumprimentos eleitorais ou medidas de recortes de direitos.

 Hoje, vivemos tudo isso direta e diariamente nos países da Europa do sul, como o Estado espanhol, a Grécia, Portugal etc. Além disso, se a situação se complica para os interesses dominantes (econômicos) sempre restarão opções "democráticas”, como o estado de emergência ou, inclusive, o golpe de Estado, que, paradoxalmente, serão justificados como caminho necessário para a restituição democrática (Egito). Essa é a democracia representativa que a proposta neoliberal propugna.


Ao voltar às primeiras fases da imposição do neoliberalismo, veremos que, em termos práticos, estas aconteceram no Chile (1973) do ditador A. Pinochet. Esse país foi convertido pela Escola de Chicago, berço da teoria neoliberal, no laboratório ideal das políticas estruturais de ajuste, de liberalização e privatização dos setores estratégicos produtivos e a conversão do Estado em mero administrador do novo poder dos mercados e interesses econômico-financeiros. Tudo isso contando com o contexto que supunha o desaparecimento de direitos políticos, trabalhistas, sociais e civis, sofridos pela população chilena no marco da ditadura e que impossibilitava qualquer mínimo exercício de oposição.

Posteriormente, em uma nova fase de implantação das doutrinas neoliberais, esta se revitalizaria já nos chamados sistemas democráticos. Neutralizam a ideia de que essas políticas somente eram aplicáveis em ditaduras e articulam os meios para torná-las possíveis também em "democracias”. A Bolívia supôs um primeiro passo. Acabava de acontecer eleições (1985); o país ainda vivia um processo de transição após décadas de ditaduras militares e a imposição das medidas de choque tiveram que ir acompanhadas da repressão, para tentar destruir o sindicalismo e o movimento social, centrando-se em seus dirigentes e chegando à declaração pontual de estados de sítio que facilitam as imposições do novo modelo. Como ressalta N. Klein, "a Bolívia proporcionou um modelo para uma nova classe mais digerível de autoritarismo: um golpe de Estado civil levado adiante não por soldados de uniforme militar, mas por políticos e economistas trajados e protegidos pelo escudo oficial de um regime democrático”.

A partir desse momento, esse processo se acelerará e, com receitas mais ou menos iguais, se irá impondo em outros países, como na Rússia de Boris Yeltsin ou nos países do antigo Leste europeu. E tudo isso, sem esquecer paradigmas como as medidas de Ronald Reagan ou de Margareth Thatcher para instaurar o neoliberalismo também em países centrais do sistema-mundo, passando, como exemplo, pela destruição de quem não estivesse disposto a assumir as novas vias e que possam levantar um muro de contenção contra, como é o caso do potente sindicalismo mineiro inglês. Em outros países, o sindicalismo foi assumindo um papel dócil, com o novo sistema dominante e exemplos disso estão muito perto de nós.


Porém, outro exemplo paradigmático da hipocrisia neoliberal em relação direta com o sistema democrático tem se dado contínua e reiteradamente no mundo árabe e se aprofunda em datas recentes. Chamamentos retóricos históricos em defesa da legalidade e da democracia conjugaram-se permanentemente com o respaldo prático a regimes tirânicos, como as monarquias petrolíferas da península arábica, onde o desaparecimento dos direitos mais elementares da população e, especialmente, das mulheres, é uma constante, junto com o apoio total da Europa e dos EUA. Outros regimes de corte parecido se respaldaram, por exemplo, ao longo de todo o norte da África, enquanto esses responderam positivamente aos requerimentos político-econômicos dominantes neoliberais.


Recentemente, assistimos às chamadas "primaveras árabes”, onde os levantes da população contra os regimes ditatoriais iam acompanhados pela falta de entusiasmo por parte das democracias neoliberais ocidentais nos casos em que a revolta se dava contra regimes "amigos” (Túnis, Egito, Bahrein, Iêmen...). Com a aberta intervenção, inclusive militar, quando esses levantes foram contra sistemas políticos "perigosos” (Líbia, Síria...).


É evidente que o primeiro que se desprende é que mesmo que se propugne a democracia como o sistema político mais respeitoso aos direitos humanos e ao bem estar das populações, na hora da verdade esta não serve igualmente a todos os povos e fica subordinada aos interesses econômicos neoliberais. Acabamos de ver isso no Egito, onde o novo golpe de Estado (3 de julho), levado adiante pelo exército que governou o país durante os últimos 50 anos, devolve a este o poder e as democracias do ocidente o aplaudem não o qualificando como golpe de Estado e tomando medidas que ficam unicamente no declarativo; enquanto, efetivamente, supõem um claro respaldo às novas autoridades golpistas. Isso tudo inclusive após a matança de centenas de pessoas (segundo as cifras mais conservadoras) que se tem produzido no país norte africano.


A Europa e os EUA chamam hipocritamente à "contenção das partes”, esquecendo qual a parte que detonou o golpe de Estado contra a democracia e qual parte está colocando a imensa maioria de mortos e feridos. Como ressaltava recentemente R. Fisk, em La Jornada, do México, depois disso, que muçulmano voltaria a acreditar nas urnas?

Em suma, a própria chanceler alemã, Angela Merkel, resumia recentemente o "espírito democrático” que expressam os sistemas neoliberais, ao dizer: "Podemos ajudar aos países da região; porém, somente se as próprias sociedades elegem o caminho correto”. A frase, em exercício de sinceridade política, deveria continuar: "e nós definimos qual é o caminho correto”, plasmando a marca colonialista, paternalista e imperialista que também caracteriza ao neoliberalismo quando este tira sua máscara democrática. Essa é, em grande medida, a hipócrita atitude do neoliberalismo com relação à democracia.



*Tradução Adital

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